domingo, 24 de setembro de 2017

Mother!



“Eu sempre quis contar uma história não sobre a minha e nem a sua, mas a nossa mãe, a mãe natureza, nossa casa, nosso ambiente e enfatizar o tema a nível humano."

Palavras de Daron Aronofsky numa coletiva recente sobre seu novo filem, "Mother!" ("Mãe!").

Agora é a minha vez ou como é a vida depois da queda no abismo. Seriam títulos possíveis. Ou ainda, como disse Marina Abramovick sobre Mother!, "When you had nothing left to give, you ripped out your own heart" (Quando você não tinha mais nada para dar, você arrancou seu próprio coração). E é assim. Acabei de assistir o novo filme de Aronofsky, pessoinha que já havia desconjuntado minha cabeça com Cisne Negro (mesmo sabendo que suas referências vêm de mangás, no caso do Cisne negro, Perfect Blue). Meio que já sabia o que me esperava. Corte de papel na carne mole do olho. Poucas vezes vi a crítica tão dividida sobre um filme: pretensioso, metido, pior filme do ano, carro alegórico, melhor filme do ano, vulgar sem ser sexy. Arrancou risos da plateia no Festival de Toronto, etc. Lembrei dos risos de toda uma seção quando assisti Cisne Negro. O riso de escárnio do desconhecido, o deboche do que não se quer conhecer. Como gente pequena que ri dos outros pra menosprezar.

Me ocorre o pai nosso, a oração que, supostamente, Cristo nos ensinou. 'Pai' nosso que estais nos céus - fazendo um adendo - dificilmente me esquecerei de ‘Mãe’ tão cedo. Não me levem a mal, sou filha dum lar cristão, mãe devota mariana (sagrado feminino), pai devoto de Camões e Padre Cícero, comunista, detestava igrejas, mas sentia que existia um criador. Sempre me lembro do meu pai falando do criador, e tinha medo no olhar dele. Dele. Ele. E eu nunca gostei do medo que sentia pelo deus cristão. Passei meus primeiros anos escolares num colégio de freira, e poucas coisas podem ser tão traumáticas quanto estudar numa escola religiosa. Passei essa fase todo odiando calada tudo o que sentia dessa religião: culpa, raiva, remorso e perda. Dai cresci e me libertei disso tudo, mas a simbologia está por toda a parte, especialmente o resíduo do Deus provedor, criador que supostamente nos ama, mesmo com todo o apocalipse de presentinho.



Mas ficou uma pergunta, ao menos pra mim, o que Aronofsky queria de nós?  Quando o longa começa, a impressão é de que jamais sairemos daquela casa, tão verdade que é mentira, tão mentira que é verdade: decerto, a casa não sairá de nós. Sabe quando se tem um pesadelo e não se consegue acordar? O terror e o desespero começam a tomar conta do corpo, não se sabe como reagir: choro, riso, se mover, correr.

Este é o angustiante cenário montado por Aronofsky em Mãe!, para nos envolver numa espécie de alegoria do velho e parte do novo testamentos, em que cada personagem sem nome próprio representa simbolicamente alguma persona bíblica. No início, um casal, formado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem, vive isolado em uma enorme casa. Enquanto ela é responsável por restaurar toda a estrutura da incrível casa, ele passa os dias buscando inspiração para escrever mais uma história. Até que uma noite, um estranho (Ed Harris) bate à porta, se apresenta como médico e diz que confundiu a grande casa com uma pousada. Há um conforto espacial em saber que estamos no controle, o terror compreende a surpresa, mas também a domesticação dela, tentamos o tempo todo adivinhar para onde iremos, e para isso decoramos caminhos, reparamos em ruídos ou pequenos movimentos, criamos uma espécie de escudo pela adivinhação. No decorrer do expediente, vamos entendendo que o fora e o dentro serão conceitualmente embaraçados, numa avalanche de metáforas que pisarão em cima de nós, sairemos de casa, e entraremos no cinema, e muito provável, sentiremos a mais perversa agorafobia, na melhor das hipóteses, seremos testados.

Confusa e contrariada com a situação de ter um desconhecido sob o seu teto, Jennifer Lawrence mantém o tom educado ao lidar com o seu desconforto, até mesmo quando a esposa do forasteiro (Michelle Pfeiffer) surge e se impõe como dona do espaço. Paulatinamente, vamos sentindo o desconforto de Jennifer Lawrence ( e da casa) com a presença dos indesejados hóspedes. Mesmo convivendo com o crescente caos, Jennifer Lawrence tenta manter o seu lar intacto, enquanto o marido está mergulhado na vaidade e busca receber o amor de desconhecidos. A ideia de ser adorado pelo casal estrangeiro o fortalece, tal como um alimento para o corpo. A benevolência de suas ações durante o filme nos causa mais aflição, sua maior necessidade é ser amado acima de todas as coisas. Vocês já ouviram isso antes, não?



Mas reparem, Jennifer Lawrence é a mãe natureza, a casa, a base de tudo. De uma forma mais simples, a atriz representa as mulheres que são mães, que cuidam do lar e da família. Mas também ela representa a mulher sem voz, que é ignorada, sufocada e submissa às decisões dadas em sua volta; ela é a pessoa que não ganha a atenção merecida. Javier Bardem é Deus, o criador da casa e dos elementos que surgem ao longo do filme. Ele também representa o homem egoísta, que não dá o espaço merecido à sua esposa, não leva em consideração os pensamentos e desejos de sua companheira. Apenas a sua voz é a mais importante e nada mais pode ser feito, a não ser substituir a casa. O que isso tudo lembra?

Quero falar mais dessas reações, das minhas. Num determinado momento da narrativa, quando Michelle Preifer já nos arranhou sem pedir licença, quando Ed Harris já tossiu nossas interrogações, quando minha bússola de assimilação sucumbe à labirintite do mise-em-scene, passo a não sentir meus pés, meu torso, meus braços, rosto, e me vejo em lágrimas, um claro sinal de que a obra me ultrapassou, e foi mais longe do que eu, mas já estamos no meio do caminho e não queremos voltar. Um modo furtivo de nos deixar assim, meio perplexos, querendo reagir, não importa qual a reação, dessa vez com o hater também contemplado no script, tem pra todo mundo, odiar não será novidade, amar pode configurar histeria, não há consenso, não há bom senso, e que bom, não há crítica pasteurizada.

Mas afinal, o que Aronofsky queria de nós? Há um risco assumido ali, e talvez um deboche inserido na própria ideia de ruptura, nessa invasão composta pelo que queremos, pelo que queríamos. Tipo, vocês não queriam baixaria? Vocês não queriam vaiar? A megalomania que aposta não apenas na catarse, mas na anti-catarse. (Então vaiem). Tudo o que se estraga, parece propositalmente estragado, crianças desmoronando seus infalíveis castelos de carta, antes que o vento o faça. Me parece um cinema que não depende do que temos a dizer, quando piora, é para valorizar o próprio tombo, quando salta, é sem nada a perder, até por isso queimará bastante em sua fogueira de perversões. Não sei ainda se 'Mãe!' é um material rindo das nossas projeções e comoções, do nosso jeito de sentenciar a arte, da religiosidade completamente rendida ao frisson ‘fandom’ viés fanatismo. Um falem bem, falem mal, mas façam tumulto, invadam a minha casa e desobedeçam minhas regras, velem os mortos das redes sociais, tratem a minha obra como a casa de vocês, mexam na privacidade, odeiem a J- Law, citem que essa é a minha fanfic bíblica, invadam esses espaços - supostamente meus. Ainda que alguém tente explicar o que esse filme queria de nós, a resposta são todas as respostas. 

Inté.

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